2006-04-11

O Seqüestro da Tolerância

Manhã, tão bonita manhã,
Na vida, uma nova canção
Cantando só teus olhos,
Teu riso, tuas mãos,
Pois há de haver um dia
Em que virás.

Das cordas do meu violão,
Que só teu amor procurou,
Vem uma voz
Falar dos beijos perdidos
Nos lábios teus.

Canta o meu coração,
Alegria voltou,
Tão feliz a manhã
Deste amor.

(Manhã de Carnaval - Luíz Bonfá)


Era uma fria e escura tarde de inverno, em um trem entre a Alemanha e a Austria. Uma mãe jovem e sua filha estavam na mesma cabine que eu. A pequeninha queria brincar comigo. Brinquei, claro... a menininha era um doce. A mãe observa, entretida com as idas e vindas da garotinha, que levava um brinquedo, e sentava uma boneca no chão, e empilhava uns cubos, e falava, falava essa língua universal que não diz nada mas diz tudo, cuja entonação já aponta como se resolverá a menina no futuro, como vai lidar com o mundo, esse mundo pequenino de brinquedo...

A mãe me olha e faz a pergunta fatal... "De onde você é?" e respondo encabulado, baixinho "Brasil...?" Inesperadamente, os olhos dela brilham... "Uma vez vi um filme brasileiro... lindo" diz ela, "Orfeu Negro". Totalmente surpreendido, ouvi imediatamente na cabeça as estrofes cantadas por Eliseth Cardoso, e nesse momento não estava no trem escuro, via o morro, via o mar e a voz linda acompanhando o andar de alguém, a voz cheia de esperança e beleza, o calor... Como de um golpe, aquele filme, que terei alguma vez visto em um pequeno televisor, era maior que o mundo.

Conversamos sobre o filme, sobre o Brasil. A pequenina, claro, comentava também, intercalando interjeições, tranquilamente inserida na conversa. Falamos sobre o carnaval, os morros, as favelas, as pessoas que se juntam para fazer algo, neste caso o espetáculo do carnaval.

Muitos anos depois, a inesperada visita romântica da favela a um trem europeu ainda está marcada em minha mente. Como podia ter chegado ali? Como uma favela imunda tinha atravessado o oceano Atlântico, para, fantasiada de utópica realidade, entrar em uma cabine de primeira classe onde uma menina brincava inocentemente com seus brinquedos, como as crianças da favela com as latas no barro?

Por lindo que fosse, hoje sei um erro. A fantasia da favela, convertida em realidade dura, não vale uma utopia civilizada. A favela é uma hedionda expressão de miséria e se reproduz como um cancer. O lindo filme ajudou a cristalizar a cultura favelosa no nosso país, o maloqueirismo. O buraco cada vez mais fundo e fácil de gente que vai e vem com uma lata d'água, o romantismo falso de uma Uganda, elevada à categoria de éden. Gente humilde ou falsa, ladrões e faxineiros, traficantes e bicheiros, professoras e policiais. O buraco da deseducação e do escárnio, o inferno cristalizado para manter a corrupção oficial, os votos garantidos na ameaça, os moleques, bastardos, dominando a cultura popular e cheirando cola. De lindo não tem muito. Entretanto, comparando com a incompetência de resolver, endeusar o lixo é muito mais fácil. As pessoas podem admirar o lixo chic. Ai de quem não apreciar... Preconceituoso! Intolerante! Lata d'água na cabeça, Maria. Teu filho brincará no barro. Terá verme na barriga. Tudo estará bem. Será lindo.






Nenhum comentário: