2006-06-08

Para ouvir Música


"Ohne Musik wäre das Leben ein Irrtum."
- Friedrich Nietzsche

Para muitos pode parecer um tanto pedante este começo. Entretanto eu não acho. "Sem música a vida seria um engano." Acredito piamente nisso. Muita gente não acha a música algo tão notável. As pessoas às vezes vem a música como um pano de fundo, como aquilo que fica 'faltando' em um filme, a trilha sonora.

É que a música tem que ser aprendida.

Muito tempo atrás, eu também não entendia. Não via qual a graça em ouvir durante 40 minutos uma orquestra acompanhando um solo de violino. Não enxergava o que era tão belo em fechar os olhos e deixar a música levar você... para onde? Confesso que faz bastante tempo, mas lembro da sensação. Acho que é a mesma coisa do que a sensação de um adulto quando se lembra, imagina-se criança e lembra perfeitamente como palavras escritas em um papel não significavam nada, não lhe diziam nada, simples manchas no papel. Um dia, miraculosamente, viu a luz e tudo fez sentido... bom, não foi tão depressa assim. Ele teve que aprender algumas coisinhas antes que tudo fizesse sentido.

Para não pensarem que sou um louco (ha ha ha, quanta gente acha isso...), eu fiz uma pesquisa com as pessoas que conheço que adoram música clássica. Aliás, dizer "adorar" é tratar o assunto com falta de respeito. Falo de gente que, como eu, não é capaz de viver sem música. Todos com quem falei tem algo em comum. Perguntei para eles como essa doença começou. As histórias variam superficialmente mas confluem para a mesma coisa. Todos eles se deixaram seduzir voluntariamente. Abaixaram as barreiras protetoras e deixaram a música entrar. O problema é que ficamos apaixonados para sempre pela primeira música que nos tocou... Não parece grave, parece?

Bom, vou contar a minha primeira vez. É notável o fato de que não há ambigüidade. É claro para mim que depois deste momento nunca mais fui o mesmo. Não foi aos poucos, todo o processo deve ter levado no máximo uma hora. Lembro do dia em que aconteceu, dos movimentos que fiz, tudo nítido. Meu pai veio da Alemanha e me trouxe um presente: uma fita cassete com duas sinfonias de Mozart. Eu incialmente fiquei meio decepcionado... o que eu faria com isso? Só ouça, disse o meu pai.

Alguns dias depois, em um momento em que estava tranquilo, não tinha nada para fazer e sabia que nada me interromperia durante a minha tentativa, peguei a fita. Traduzam isso hoje para CD, mas naquela época, em torno de 1970, uma fita cassete era o supra-sumo da tecnologia de áudio doméstico. Estéreo, Dolby. Uau! Peguei o cassete amarelo, "Deutsche Grammophon". Eram as sinfonias números 29 e 39 de Mozart, regidas por um maestro húngaro e uma orquestra alemã da rádio Bávara. Pus os fones de ouvido e liguei o som.

O que aconteceu a seguir foi um tanto decepcionante. Sim, ouvia os sons, sim, seguia as melodias, mas não compreendia o sentido daquilo tudo. Ouvi uma e depois a outra, não sem ficar perdido diversas vezes no meio delas. No fim, um tanto decepcionado, decidi ouvir novamente. Desta vez, miraculosamente, tudo foi diferente. Pelo fato de eu ter ouvido uma vez, as melodias já frequentavam a minha mente e a surpresa não era total cada vez que uma nova linha melódica entrava. Pos esse motivo podia me concentrar nos detalhes, já que a estrutura básica já estava meio gravada em minha mente. Nos detalhes é que estava a música. Nas pausas os suspiros, nos crescendos o descortinar de mundos, literalmente mundos novos de cor e forma. Digo cor e forma porque não há palavras para descrever este universo sonoro, não há como expressar em palavras. É como se, de repente, pudéssemos ver novas cores que nunca havíamos visto antes. Como as descreveríamos? Esta cor é mais assim, tipo mais assado...? Não. E não são só cores, são formas, são estruturas que variam continuamente na nossa frente. O mais impressionante é que de alguma forma as catedrais de som estão mais conectadas a nosso ser emocional do que nossa própria mente racional. Constituem um atalho ao mais profundo de nós mesmos.

Ouvindo a sinfonia pela segunda vez, o acorde maior com que começa se dissolve em uma espécie de oceano tépido ao mesmo tempo que uma linha decrescente, uma escala se destaca do fundo. Esta linha se destaca como se fosse tri-dimensional e se aproximasse de nós, sem jamais nos tocar diretamente, mas se a interpretação for diferente, a impressão também será diferente, mesmo tocando as mesmas notas. O toque humano é tão tremendamente necessário que, quando falta, a música se transforma em algo plano, como se o mundo pudesse ser descrito só com fotos em preto e branco. Perdem-se relevos, destaques, cores, formas, temperaturas, sopros, luzes, sol, calor. Quem não vê isso, ainda não entendeu o que é música.

Não sei se todos podem sentir o que sinto. Eu não podia, e aprendi. É mais fácil aprender com algo simples, Mozart por exemplo. Mas não adianta ficar repetindo ad infinitum um movimento de uma sinfonia, há que se estar aberto, há que receber e incorporar primeiro, sem entender realmente, da mesma forma como se decora um poema ou uma canção. Depois disso é que se pode sentí-lo, entendê-lo. Um amigo teve a mesma experiência com Schubert, acho que foi a nona de Schubert. Depois para mim veio Bach, uma Toccata e Fuga transcrita para orquestra magicamente por Eugène Ormandy. Nunca gostei tanto de nenhuma outra transcrição depois de ouvir esta. O concerto para violino em Ré de Bach com Yehudi Menuhin... as aberturas.

A partir daí foi tudo. Demorei um pouco mais para gostar de óperas, mas elas tem a sua graça. Os Lieds são como sutis poemas curtos... e por aí vai. Nunca mais fui o mesmo. Continuo apaixonado por quem me tocou pela primeira vez. Como um viciado em heroína, continua fixa na minha mente a imagem da minha primeira seringa. Em todos os momentos da minha vida posso identificar um acorde, uma relação de sons para cada movimento, para cada ação, para cada sensação. O meu mundo se expandiu e alcanço alturas antes impensáveis.





8 comentários:

Anônimo disse...

Por estudar música desde criança (comecei com 6 anos os meus estudos de piano) eu sempre ouvi música clássica. Eu não sei dizer se isso é influência desse tipo de música mas a mania de "desmontar" os sons (ouvir com mais atenção as cordas, depois os metais, depois a percussão, etc) me leva a ouvir repetidamente a mesma música por horas. Acho que encontrei alguém que pode compartilhar isso comigo, Zappi, porque sempre ouço que isso não é "normal". Cheguei a gravar uma fita só com a Polonaise Heróica de Chopin (meu favorito). Hoje, com os leitores de mp3, tudo ficou mais fácil.
Mas o que eu queria dizer é que não só a música clássica oferece essa possibilidade. Isso pode perfeitamente acontecer com qualquer outro gênero. Jazz, blues, mpb, qualquer um. Se for instrumental, mais fácil fica.
Muito interessante esse seu post, Zappi.

Anônimo disse...

O Blogspot ontem impediu quase toda a comunicação (mas dizem que é para melhorar, pedem desculpas pelo transtorno etc.)e eu fiquei com um monte de comentários entalados. Primeiro, planejei ler pausadamente os textos sobre a Montanha Mágica. Não deu. Li tudo de uma vez. Eu não consigo acreditar que tem gente que acha que essa vida é pouco e que renasceremos para outras e outras. Eu não dou conta dessa que me deram! E talvez não vá nunca ao Hawai, piorou. Música, música, música... qual era a trilha sonora da viagem? O que eu entendo de música é que sem ela a gente enxerga menos, perde um pouco dos sentidos. Música aguça os sentidos, nos põe em alerta para a vida.

Anônimo disse...

A viagem foi acompanhada de "Also sprach Zaratustra", pelo menos no topo da montanha mágica. A música estava só na minha cabeça, que fique claro...

Felipe Pait disse...

Tinha uma Tower Records perto da firma onde eu trabalhei aqui na região de Boston. Quando eu estava achando o trabalho chato, leia-se quase todo dia, eu ia lá dar uma olhada na seção de música clássica, mesmo que fosse para não comprar nada, só para conversar com o vovô que trabalhava na seção de música clássica.

Numa das minhas últimas visitas encontrei um CD com as sinfonias 40 e 41 de Mozart, nessa gravação do Ferenc Fricsay, pela inesquecível quantia de 25 centavos de dólar. Lembrava dessas gravações, nem sei se da coleção do meu pai ou do meu avô. Foi minha última compra lá. A única saudade que tenho da empresa, a então chamada Alphatech. Fora o fato de que, ao contrário da USP, eles pagavam o salário todo mês, mas isso já é outra história.......

Anônimo disse...

Essa semana, por motivos que não cabe aqui comentar, fui atrás do Concerto de Aranjuez, que eu adoro talvez pela possibilidade de sopros e violão. Dá pra baixar MP3 com Paco de Lucia e outros. Acho que é uma música que cabe muito bem com paisagens e com muitos e muitos tipos de sentimentos.

Zappi disse...

Shirlei: é bárbaro esse concerto. Scheherazade de Rimsky-Korsakov é outro que me impressiona. Neste último, o maior problema é que a interpretação é tudo. Ouvi muitas versões quase insuportáveis. Infelizmente não me lembro de qual era a que eu gostava. Scheherazade é pura sensualidade.


Fritz, que coincidência: acho que Ferenc Fricsay era o regente cujo nome eu tinha esquecido. E também acho que a orquestra era a Bayerische Staatsoper. Obrigado!

Clau disse...

ZAppi, grata pela visita. Vejo que dividimos o mesmo amor pela música!

Sempre gostei,meu avô ouvia as bolachas na velha Telefunken mas agora vivo com alguém que vive no planeta Música (pianista clássico) e isto faz toda a diferença do mundo. Aprendi a ver e sentir a música de uma forma totalmente diferente. Percebi que ela também tem perfume, tem muito mais cores do que imaginava e o mundo não pode sequer existir pra mim sem um trio de Haydn logo pela manhã.

Meu sogro costumava dizer que quem não gosta de música clássica é pq 'não ouviu direito'. Acho que ele tinha razão.

Impossível não gostar :-)

Abraços cariocas

Anônimo disse...

Clau,

Você tem razão. Clássicos pela manhã e à medida que o dia corre ir em direção a barrocos ou orquestrais do fim do século 19, ou românticos como Brahms, para começar de novo no dia seguinte. Vou fazer um roteiro para passar o dia.

Eu também casei com uma pianista!!!

Um abraço australiano
Zappi